sábado, 19 de abril de 2008

“Eu” contra “Eu”


Quando o Homem, ainda jovem, desejou cometer o primeiro desatino, aproximou-se o Bom-Senso e observou-lhe:
-Detém-te! Porque te confias assim ao mal?
O interpelado, porém, respondeu orgulhoso:
-Eu quero.
Passando, mais tarde à condição de perdulário e adotando a extravagância e a loucura por normas de viver, apareceu a Ponderação e aconselhou-o:
-Pára! Porque te consagras, desse modo, ao gasto inconseqüente?
Ele, contudo, esclareceu, jactancioso:
-Eu posso.
Mais tarde, mobilizando os outros, a serviço da própria insensatez, recebeu a visita da Humildade, que lhe rogou piedosa:
-Reflete! Porque não te compadeces e ajudas caridosamente aos mais fracos e ignorantes?
O infeliz, todavia, redargüiu, colérico:
-Eu mando.
Absorvendo imensos recursos, inutilmente, quando poderia beneficiar a coletividade, abeirou-se dele o Amor e pediu:
-Modifica-te! Sê caridoso! Como podes reter o rio das oportunidades sem socorrer o campo das necessidades alheias?
E o mísero informou:
-Eu ordeno.
Praticando atos condenáveis que o levaram ao pelourinho da desaprovação pública, a Justiça acercou-se dele e recomendou:
-Não prossigas! Não te dói ferir tanta gente?
O infortunado, entretanto, acentuou, implacável:
-Eu exijo.
E assim viveu o Homem, acreditando-se o centro do Universo, reclamando, oprimindo e dominando, sem ouvir as sugestões das virtudes que iluminam a Terra, até que um dia, a Morte o procurou e lhe impôs a entrega do corpo físico. O desditoso, entendendo a gravidade do acontecimento, prosternou-se diante dela e considerou:
-Morte, porque me buscas?
-Eu quero – disse ela.
Porque me constranges a aceitar-te? – gemeu, triste.
Eu posso – retrucou a visitante.
Como podes atacar-me deste modo?
Eu mando.
Que poderes te movem?
Eu ordeno.
Defender-me-ei contra ti – clamou o Homem, desesperado – duelarei e receberás a minha maldição!... Mas a Morte sorriu, imperturbável, e afirmou:
Eu exijo!
E, na luta do “eu” contra “eu”, conduziu-o à casa da Verdade para maiores lições.

(Francisco Cândido Xavier – extraído do Livro: Contos e Apólogos)

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